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Soul – A Sabedoria d’O Louco

por Martha Rocha
desenho de bia sá inspirado na carta O Louco e na crítica de Martha Rocha sobre o filme Soul

Martha Rocha é graduanda em Administração Pública pela UNICAMP, taróloga e curiosa. Não é Miss Brasil (ainda). É colaboradora da Aboio.


Há alguns anos que os filmes da Pixar facilmente ganham a pecha de se tratarem, na verdade, de filmes voltados ao público adulto com uma mera roupagem colorida e atrativa, muito em razão dos assuntos ditos profundos de que costumeiramente tratam os longas. Depois de Up (2009) trazer à tona pautas como o luto e a velhice, Divertida Mente (2013) tencionar elucidar o complexo universo das emoções e das memórias e Coco (2017) pousar sobre os delicados temas da morte e da honra à família, o mais manifesto deste gênero certamente é Soul (2020), que sem massagem alguma lança ao espectador a questão mais primeva, metafísica e nada sutil que pode ocorrer a um ser humano: qual é o sentido da vida?

Relegar as animações declaradamente infantis ao espaço exclusivo de apreciação dos pequenos é um insulto à inteligência deles, ao passo que tentar deslocá-las à circunscrição da compreensão particularmente adulta também pode ser considerado um menosprezo ao deleite que uma história bem contada tem para oferecer, mesmo que seja com a tentativa jocosa de responder à indagação densa a que se propõe. Deixar-se submergir por uma narrativa e pelas simpáticas impressões que nos deixam seus personagens é recuperar, sim, um aspecto da infância que nos é consistentemente negado conforme envelhecemos. Envelhecer, de alma ou de idade, mais do que caminhar junto à marcha inexorável do tempo, costuma significar enrijecer pontos de vista de maneira a deixar poucos recintos disponíveis para o novo se aflorar. O arcano O Louco, do tarô, como representação máxima de tudo que é novo, então, se aproxima como uma brisa fresca e se entranha através de divertidas coincidências na fábula moderna que Soul pretende contar.

O arcano d’O Louco, por se tratar de um estado embrionário no qual tudo é possível, é o elo entre retorno e partida (…)

O filme narra a história de Joe Gardner, nova-iorquino de meia-idade e professor de música apaixonado por jazz cuja maior aspiração é se tornar um músico de renome. Afinal, como ele repete ao longo de todo o filme, tocar piano é sua missão de vida. Apesar dos grandes sonhos, Joe vê-se preso a uma vida mediana lecionando a adolescentes desinteressados, passando seu conhecimento com um vigor que destoa da insipidez com que seus ensinamentos e sua inspiração é recebida. Todo esse cenário muda quando Joe é convidado a tocar no quarteto da lendária jazzista Dorothea Williams, o que, segundo ele, era a chance de sua vida. Tudo ocorre muito bem na audição até que, voltando para casa, Joe cai em um buraco e morre. Simples assim.

A bem da verdade, como é posteriormente nos explicado, a alma de Joe (que se recusa veementemente a dirigir-se ao pós-vida) encontra-se em um campo de possibilidades infinito do universo, ou tal como descrito no próprio filme, uma “via de acesso hipotética entre vida e morte”. A partir daí, então, na narrativa, passamos a lidar com Joe despido de sua forma corpórea e transformado em uma caricata figura pequena e azulada que carrega algumas semelhanças com seu corpo terreno. Após diversos quid pro quos, Joe então acaba sendo responsabilizado pela tarefa de ser mentor de uma alma que, diferentemente dele, está se preparando para ir à Terra, ou seja, nascer. As almas que estudam na chamada Escola da Vida antes da descida ao planeta não têm nome e são denominadas pelos seus respectivos números e a pupila de Joe se chama, curiosamente, 22.

22 é uma alma que demonstra resistência em nascer. Um dos pré-requisitos para isto é encontrar uma atividade humana, dentre uma infinidade, com a qual a alma se identifique e a qual possa exercer em sua vida. Para 22, todas as coisas são enfadonhas e sem muita significância e, apesar de já ter tentado de tudo, não se identifica com nada, muito apesar de já ter passado por mentorias com ilustres figuras da história da humanidade como Muhammad Ali, Madre Teresa e Maria Antonieta.

22, no corpo de Joe, imprime em seu corpo de meia-idade a curiosidade descompromissada de uma criança que desbrava suas primeiras sensações e seu contato com o mundo exterior.

Aqui é necessário abrir um adendo para o motivo da curiosidade deste nome. Em primeiro lugar, como o filme comicamente nos mostra, as almas recentes já se encontram na casa ordinal dos 108 bilhões, uma brincadeira com a estimativa de quantos seres humanos já viveram, de fato, no planeta. 22, então, é possivelmente uma alma velha, que desde os tempos mais longínquos faz incursões em variados campos de interesses humanos. Mas não é só isso. 

22, como veremos, pode ser considerado o número do arcano maior do tarô O Louco, um dos arquétipos mais notáveis do oráculo. Focaremos aqui na pictografia do arcano do tarô moderno Waite-Smith, que apresenta um jovem andrógino em roupas coloridas, distraidamente posicionado frente a um penhasco, carregando consigo apenas uma pequena trouxa sobre um dos ombros e uma rosa branca em uma mão. Sua postura e sua fisionomia são despreocupadas, leves, um tanto burlescas, e um cachorrinho atrás parece tentar alertá-lo sobre a queda iminente de que ele pode ser vítima se continuar a caminhar.

O tarô é composto por 78 arcanos (também chamados de lâminas ou simplesmente cartas), das quais 22 são as principais, chamadas arcanos maiores. A ordem dos arcanos maiores conta uma história similar à Jornada do Herói, conceito criado por Joseph Campbell para explicar estruturas padronizadas de narrativas que remontam às religiões e mitos mais antigos da humanidade, bem como obras cinematográficas e literárias. 

Também conhecida como monomito, a Jornada do Herói é cíclica e pode ser dividida em três partes principais: partida, iniciação e retorno. Resumindo o conteúdo do mito do herói, grosso modo, um ser humano comum percebe-se, de repente, numa disruptura de sua vida pacata e cotidiana, seduzido a encarar uma grande aventura e se atirar dentro dela, passando por provações e batalhas diversas e, quando do seu retorno ao lar, terá voltado à estaca zero transformado e mais sábio. O arcano d’O Louco, por se tratar de um estado embrionário no qual tudo é possível, é o elo entre retorno e partida, e, por muitos, é considerado, além de ser o arcano de número 22, um arcano sem número – ou de número zero. É por essa adaptabilidade que a jornada dos arcanos 1 a 22, por vezes, é chamada de Jornada do Louco. Entende-se que a evolução encontrada na progressão numérica dos arcanos trata-se, na verdade, da evolução do próprio Louco como herói.

A alegria é, de fato, a habilidade inata da caminhada inadvertida d’O Louco pela vida. Tudo o distrai, o diverte e contém possibilidades em si.

A alma 22 de Soul encontra-se provavelmente há séculos nesse estado de potencialidade incubada. De maneira contrária à Joe, ela não tem uma missão e nem pretende ter. Por ter sido duramente admoestada em razão da sua ausência de definição sobre si mesma, sente-se perdida em relação aos demais e também sente-se, de fato, louca. Entretanto, é essencial notar que quem dá ao Louco essa alcunha, o dá por razões perversas, mesmo que inconscientemente.

A escolha de nome para o próprio arcano d’O Louco é um tópico a ser discutido. Os primeiros cinco arcanos maiores que, segundo o tarólogo Nei Naiff, consistem no Caminho da Vontade, são compostos por figuras de autoridade ou maestria cujas funções são perfeitamente delineadas. O Mago domina a canalização do divino para a criação terrena; A Sacerdotisa é mestra nos domínios da intuição; A Imperatriz é a corregente amorosa e em sintonia com a natureza; O Imperador é o déspota circunspecto; e O Hierofante é o mensageiro de Deus aos homens. Figurando entre personalidades tão ilustres, um ser humano ordinário tende a se sentir inferior e, quando demonstra qualquer grau de irreverência frente a títulos tão pomposos (há quem diga, ainda, que arbitrariamente imbuídos), pode ser taxado de louco por não se adequar à norma vigente. Há um quê de revolucionário n’O Louco em seu lado luminoso maximizado, mas seu lado sombrio também nos alerta para a postura demasiado imatura que impede grandes avanços.

Futuramente, no filme, devido a uma confusão no modo de executar um rito que tem como objetivo levar Joe de volta ao seu corpo, tanto Joe quanto 22 acabam descendo à Terra. Entretanto, 22 cai no corpo de Joe e Joe é erroneamente alocado no corpinho de um simpático felino que vinha sendo utilizado como forma de terapia animal em sua recuperação no hospital. Completamente exasperado, Joe Gardner acaba à mercê da inexperiência de 22 para conduzir seu corpo, sua fala e seu modo de se portar no mundo até que as coisas sejam consertadas enquanto ele próprio se move como um gato no planeta que tão bem conhece.

Alejandro Jodorowsky, em O Caminho do Tarot, descreve a energia do arcano d’O Louco utilizando-se de termos como “grande aporte de energia” e “pulsão criativa fundamental”. Apesar de aparentemente inexperiente, O Louco, tal como 22, carrega em si a potência que só a ausência de bagagens passadas pode permitir. 22, no corpo de Joe, imprime em seu corpo de meia-idade a curiosidade descompromissada de uma criança que desbrava suas primeiras sensações e seu contato com o mundo exterior. O corpo de Joe conduzido por 22 encontra deleite comendo uma pizza, tomando um banho e percebendo os prazeres sensoriais que Joe sempre deu como garantidos ou triviais.

O Louco, tal qual 22, é muito mais um convite do que uma ordem, convite esse capaz de ativar a pulsão criativa a que se refere Jodorowsky.

A ausência de amarras com estruturas pré-concebidas é a maior arma d’O Louco, uma reluzente gema incrustada em seu espírito que chama a atenção por onde passa. Como na Balada do Louco, dos Mutantes, é como se sua energia fosse um brado semelhante ao verso “dizem que sou louco por pensar assim / se eu sou muito louco por eu ser feliz”. A alegria é, de fato, a habilidade inata da caminhada inadvertida d’O Louco pela vida. Tudo o distrai, o diverte e contém possibilidades em si.

Enquanto 22 está no corpo de Joe, Connie, sua aluna do colégio, vai até sua casa desabafar sobre seu desânimo em relação à música. Ela quer dizer ao seu professor que não deseja mais tocar na banda da escola, expressando seu descontentamento de maneira adolescente. Se Joe estivesse em posse de seu próprio corpo, ele talvez a persuadiria com um solilóquio fanático sobre a importância do estudo da música e de todo o sentido que aquilo tem para ele mesmo. Entretanto, como é 22 quem está no comando, o tom da conversa é tão adolescente quanto Connie. 22 não dá significância ao estudo do sax, mas conversa relaxadamente com a garota, que se vê convencida pela leveza do discurso e pelo espaço proporcionado que não tenta a ela nada impor. 

O Louco, pela energia púbere que carrega consigo, não é um indivíduo que, se encarnado, se prestaria a exigências imperativas. A liberdade que ele exala em sua presença é suficiente para inspirar os mais profundos e espontâneos insights que podem ocorrer a alguém. O Louco, tal qual 22, é muito mais um convite do que uma ordem, convite esse capaz de ativar a pulsão criativa a que se refere Jodorowsky.

O arquétipo d’O Louco não procura pelo apogeu de nenhuma experiência visto que, para ele, viver já é o grande espetáculo.

Há um momento posterior em que as digressões de 22 no corpo de Joe novamente são fonte de inspiração. Na barbearia de que Joe é cliente fiel, tanto os clientes presentes quanto os barbeiros são cativados pela sabedoria contida nas suas divagações dirigidas pelo espírito de 22, insufladas por uma espontaneidade que nada se relacionavam ao apego anterior de Joe ao jazz, aos seus assuntos tão restritos e à forma retesada com que ele os expressava.

Quando chegamos perto da conclusão da trama e Joe recupera seu próprio corpo, ele ainda se inclina para a avareza espiritual que o prende tão fortemente para o que ele entende como sua missão de vida, ou seja, o piano e o jazz. Finalmente conseguindo retornar para a primeira apresentação com Dorothea Williams e seu quarteto, o que deveria ser o ápice de sua existência se torna mais um grande ponto de interrogação. Apesar do êxtase causado pelo sucesso de seu primeiro show, Joe se questiona acerca do valor daquilo tudo. Em uma conversa emblemática com Dorothea, ao expressar sua insatisfação incipiente, Dorothea o conta uma fábula que, grosso modo, carrega a máxima do modo de viver d’O Louco. O arquétipo d’O Louco não procura pelo apogeu de nenhuma experiência visto que, para ele, viver já é o grande espetáculo.

Joe dá-se conta disso ao se lembrar do modo de experimentar a vida pela substância das pequenezas que presenciou ao observar 22 comendo uma pizza, tomando um banho e percebendo os prazeres sensoriais de se ter um corpo. 22, com a ajuda de Joe, por outro lado, ao decidir descer à Terra, finalmente deixa de abraçar o lado sombrio do arquétipo que representa. Torna-se, então, menos caótica, menos indisposta frente à forma e estrutura que regem a vida em sociedade e mais propensa a navegar pelo sistema existencial sem perder a insígnia da leveza de si mesma.

Sallie Nichols, em Jung e o Tarô, apresenta a possibilidade d’O Louco como salvador e redentor quando bem equilibrado em seus aspectos. O caminho para a verdadeira sanidade, então, residiria na loucura que carrega, somada, como diz a autora, “ao poder primitivo do Criador e à inocência do recém-criado”. 

O filme, sem se lançar a uma pieguice gratuita, tem seu desfecho sem necessariamente responder à pergunta inicial que, implicitamente, nos lança. Qual é o sentido da vida? Não sabemos. Entretanto, pressupõe que concordamos que encontrar seu sentido perpassa invasões frequentes do arquétipo d’O Louco em toda a nossa jornada. É só com sua despretensão jovial que se aliviam as inflamações do espírito, a rigidez do cotidiano e os compromissos que nos pesam sobre as costas pelo caminho. Ser louco, em sua acepção mais equilibrada, não é ser errado, mas sim se permitir buscar pela felicidade da maneira mais instintiva possível. E louco, na verdade, é quem o diz. E não é feliz, não é feliz!


Releitura da carta O Louco (do tarô moderno de Waite-Smith) feita pela artista visual Bambi.

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